Toda prática educativa supõe uma visão teórica que implica uma concepção dos seres humanos e do mundo. Paulo Freire[1] aponta, deste modo, para a necessidade de superação de práticas educacionais que reduzam a aprendizagem a um processo de memorização e reprodução de conteúdos referentes à realidade dos aprendizes, mas desvinculados de sua experiência existencial. Por isso, para Freire, a educação como prática de libertação deve supor um contexto de diálogo; ao possibilitar a experiência do diálogo, das pessoas entre si e destas com a sua realidade,liberta o oprimido (plano histórico-político) e humaniza o sujeito “coisificado” (plano ontológico).
Paulo Freire concebe os seres humanos como seres de busca, seres abertos, seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão, cuja vocação ontológica e histórica é ser mais, é humanizar-se. O oprimido – categoria sociológica através da qual representa, na dialética opressor-oprimidos, pessoas, grupos, classes sociais e povos submetidos a variadas formas de violência física, cultural e político-econômica – é o ser humano reduzido, na relação de opressão, a “quase coisa”, a um hospedeiro do opressor, um ser duplo e inautêntico, para quem ser é parecer com o opressor. Assim, a luta dos oprimidos contra a opressão – e dos que, com eles, verdadeiramente se solidarizam por meio desta luta – constitui-se em um ato de amor. Um compromisso humanista.
Em sua existência, o ser humano relaciona-se com o mundo, comunica-se por meio de uma linguagem existencial, que exprima a sua experiência concreta da realidade vivida e possibilite o comprometimento com a sua circunstância. Esta experiência propicia o exercício do diálogo, que se realiza mediado pela realidade, pelo mundo. O diálogo, enquanto encontro de sujeitos que pronunciam o mundo, é a comunhão daqueles que buscam saber mais. À experiência do diálogo, Paulo Freire associa as noções de encontro (de sujeitos), comunhão (entre os seres humanos) e experiência comunitária, noções enraizadas na matriz semítica de seu humanismo.
Por meio do diálogo, entre si e com o mundo, os seres humanos tornam-se históricos, integrados à sua realidade, interferidores em seu contexto. O diálogo atua como um instrumento de promoção da consciência crítica, da autonomia e da responsabilidade do sujeito – que são aprendizagens existenciais adquiridas através de experiências concretas, viabilizadas pela ampliação da participação e atuação na vida da comunidade, da ingerência na vida das organizações comunitárias e das instituições públicas, como a escola local.
Promovendo, por meio da aprendizagem do diálogo, o percurso da heteronomia para a autonomia, a educação cumpre a sua tarefa de elevar o grau de consciência dos sujeitos acerca dos problemas de seu tempo e de seu espaço, torna-se educação orgânica. Em relação de organicidade com o espaço e com a época, possibilita o posicionamento consciente, crítico, diante do contexto, de modo que o sujeito possa nele interferir, modificando-o. Neste sentido, a educação faz-se instrumental e a emancipação do sujeito corresponde à ação de ajudá-lo a ajudar-se, isto é, ajudá-lo no desenvolvimento de sua consciência crítica diante de seus problemas e dos problemas de sua comunidade.
O conceito de libertação dos oprimidos é o equivalente político, na obra de Paulo Freire, da promessa moderna de emancipação do indivíduo. Neste sentido, remete, no plano histórico-político, à constatação de uma realidade opressora e à contradição opressor-oprimidos. No plano da pessoa, o conceito de libertação dos oprimidos corresponde ao de humanização, ou seja, na luta contra a opressão, tarefa humanista e histórica dos oprimidos, estes se tornam “restauradores da humanidade”, deles próprios, os oprimidos, e dos opressores. Influem, nesta mudança conceitual, a sua formação católica, o seu humanismo de matriz semítica e a aplicação da dialética marxista na elaboração de sua teoria crítica.
A palavra pronunciada é práxis quando a sua autenticidade encontra-se referida à ação que transforma o mundo. A palavra inautêntica, isto é, aquela cuja pronúncia não transforma a realidade, indica a persistência da dicotomia estabelecida entre os dois elementos constituintes da palavra. De acordo com Paulo Freire, ação e reflexão são duas dimensões da palavra de tal modo solidárias entre si que, sacrificada uma, a outra se ressente. Com o intuito de exprimir o significado desta unidade dialética, cunhou novo vocábulo: “Assim como não é possível linguagem sem pensamento e linguagem-pensamento sem o mundo a que se referem, a palavra humana é mais que um mero vocábulo – é palavração” (1977, p. 59).
Humanização, diálogo e libertação, três conceitos com os quais Paulo Freire pronunciou o mundo e nos inspira a continuar pronunciando-o.
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A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.
Paulo Freire
Paulo Freire
[1] Paulo Reglus Neves Freire (1921–1997) nasceu na cidade de Recife, estado de Pernambuco, região nordeste do Brasil. Embora graduado pela Faculdade de Direito de Recife, optou pela carreira de professor. Dirigiu o setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria (SESI), tornando-se Superintendente desta instituição. E foi professor na Universidade Federal de Pernambuco. Após o golpe militar no Brasil (1964–1985), foi preso e exilado político. Lecionou na Universidade de Harvard (EUA). Foi Consultor Especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra (Suíça). Desenvolveu consultoria educacional a vários governos da América Latina e da África. Ao retornar ao Brasil, lecionou na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atuou como Secretário de Educação no Município de São Paulo (Brasil). Fonte: http://www.paulofreire.org/.
José Edemilson Pereira dos Anjos. Coordenador do SOFIA Centro de Estudos e mestrando vinculado ao Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade (PPGeduC), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) no Brasil.
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